O Vestido

Carlos Drummond de Andrade escreveu “Caso do Vestido”, um poema que traz o discurso de uma mulher que conta às filhas sobre como o marido a traiu. A partir desse texto, nasce o filme dirigido por Paulo Thiago, que propôs a um outro Carlos, Carlos Herculano Lopes, que escrevesse um romance baseado no poema de Drummond. Aceito o desafio, a missão foi cumprida e deste livro faz-se o roteiro cinematográfico, de autoria de Paulo Thiago e Haroldo Marinho Barbosa.

É sobre o filme que se fará uma análise guiada pelo seguinte questionamento: que percurso deve-se escolher para enxergar o filme sob a perspectiva do poema.

Foto por YI REN em Pexels.com

Uma Cruel Traição

“O Vestido” conta a história de uma mulher, Ângela, modelo de esposa e mãe segundo as “exigências” da sociedade patriarcal brasileira numa pequena cidade do interior. O marido dela, Ulisses (Leonardo Vieira), deixa-se seduzir por uma moça vinda do Rio de Janeiro, Bárbara.

No poema de Drummond, os personagens não são nomeados; no filme, sim. Vamos perceber como os nomes dizem da personalidade de cada um: Ângela (Ana Beatriz Nogueira) vem de anjo, símbolo de pureza e bondade. Bárbara (Gabriela Duarte), leva a bárbaro, povos bárbaros que chegam com violência, não pacificam ninguém; pelo contrário, Bárbara planta a discórdia ao separar a família; Ulisses remete à Odisséia, à viagem, a quem precisa andar, vagar, sair para talvez se encontrar.

O filme começa e termina citando literalmente o poema-fonte de Drummond: inicia com as duas filhas perguntando sobre o vestido. Terminam informando que tudo talvez não tenha passado de um sonho: “vestido não há… nem nada.” O longa-metragem utiliza um trecho do que parece ser um manuscrito de Drummond. A diferença é que o poema revela um pouco além: “eis que ouço vosso pai subindo a escada.”

No momento de comparar filme e poema, nota-se claramente que a essência do texto poético é mantida na realização cinematográfica e no fundo, trata-se de uma história de amor imperfeita, sujeita à traição perversa do marido que obriga a mulher a pedir que a amante se entregue a ele; aos desvios do andarilho Ulisses que depois das descobertas da paixão, decide voltar para casa.

No poema longo e cheirando à prosa de Drummond, existe a entrelinha, o que não é dito, o que fica à beira, o que se traduz numa atmosfera de mistério. A película de Paulo Thiago pretende encher vazios, corre o risco de sufocar as entrelinhas, transforma o Ulisses num homem em busca de ouro, de dinheiro; homem confuso mais pela precária situação financeira – teve que pedir dinheiro emprestado ao primo da mulher, Fausto, para quitar dívidas – e não por indagações existenciais. A viagem que empreende é em busca do ouro e Bárbara vira apenas uma aventura fora do casamento – Bárbara se transforma numa amante desagradável, alcoólatra, ciumenta e cheia de culpa por ter desfeito uma família. Devolve o tão cobiçado vestido para se purgar de pecados.

A história do filme se pretende inteira e linear. O poema é misterioso, traz imagens de pessoas querendo se realizar, encontrar-se. 

O principal mérito é chamar a atenção para uma obra primorosa de um dos mais importantes poetas brasileiros. Não deve ser finalidade da ponte que se estabelece entre cinema e literatura satisfazer o autor ou admiradores ou estudiosos da obra em que foi baseada. As obras – o poema e o filme – são independentes, cada uma tem seu “élan”, seu sopro primordial; a primeira tem leitores e a segunda, telespectadores que podem ou não ter tido acesso aos escritos de Carlos Drummond de Andrade.

No livro que reúne entrevistas de rádio concedidas por Drummond à amiga e jornalista Lya Cavalcanti, Tempo Vida Poesia – confissões no rádio, o poeta mineiro fala sobre o poder da literatura:

O que há de mais importante na literatura, sabe? é a aproximação, a comunhão que ela estabelece entre seres humanos, mesmo à distância, mesmo entre mortos e vivos. 

O poeta provocou essa aproximação no diretor Paulo Thiago, um apaixonado pela obra do poeta de Itabira. No filme, Ulisses cita trecho do poema Canção Amiga na beira do riacho da fazenda que pertencia a seu pai:

Minha vida, nossas vidas formam um só diamante. Eu distribuo um segredo como quem ama ou sorri.

Literatura e cinema. O Caso do Vestido e O Vestido. É mesmo uma soma, uma contribuição; não é literatura versus cinema; não estão e nem devem estar numa arena; não se digladiam; literatura foi feita para ser lida; cinema para ser visto.

Uma bela obra O Vestido, filme nascido de um poema que virou livro que virou roteiro de cinema. Literatura e cinema dialogam e quem sai ganhando somos nós.

Esse texto foi escrito por mim e Givaneide Maria da Costa em setembro de 2009 como pré-requisito parcial para a disciplina Literatura e Cinema (Universidade de Pernambuco), ministrada por Ana Patrícia Frederico Silveira.

PALAVRAS-CHAVE

Literatura brasileira – poesia – Carlos Drummond de Andrade – cinema – Paulo Thiago

REFERÊNCIAS

ANDRADE, Carlos Drummond de. Caso do Vestido in Nova Reunião – 19 livros de Poesia, José Olympio Editora, 1985, p. 157.

ANDRADE, Carlos Drummond de. Tempo Vida Poesia – confissões no rádio. 2ª edição, Rio de Janeiro, RJ: Editora Record, 1986.

O VESTIDO (Brasil, 2003). Direção: Paulo Thiago. Roteiro: Paulo Thiago e Haroldo Marinho Barbosa.

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2 comentários em “O Vestido

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